quarta-feira, 6 de maio de 2009

Contribuições (Hipóteses) para o estudo da história das políticas educativas em Portugal (1940-1970)

(a) Os anos 50 marcam uma viragem nas políticas de educação do Estado Novo, sem que, todavia, se possa falar em ruptura com o passado, designadamente no plano ideológico. Essa viragem tem um expressão material no crescimento sustentado das taxas de frequência escolar,
em resultado de uma nova dinâmica da procura e da oferta de educação escolar, e significa a emergência e a afirmação dominante de uma concepção de escola como agência de desenvolvimento económico, através da formação dos recursos humanos, relegando para
plano secundário (embora sem deixar de estar bem presente) a anterior concepção de escola como aparelho de doutrinação ideológica e de controlo social.

(b) Essa viragem na política educativa resultou de um conjunto de mudanças invisíveis na sociedade portuguesa, na interessante expressão de Fernando ROSAS (1994), e da crescente afirmação dos industrialistas na condução da política nacional. O conhecimento dos propósitos e das medidas preconizadas por esta corrente política do Estado Novo, que teve em Ferreira DIAS e no seu livro Linha de Rumo (DIAS JÚNIOR, 1946) a sua mais influente personalidade (e obra), torna-se fundamental para compreender o cerne dessa viragem na política educativa.

(c) A reforma do ensino técnico de 1948, o lançamento e concretização do Plano de Educação Popular (1952-1955), - que permitiu, pela primeira vez em Portugal, cumprir o princípio da escolaridade obrigatória decretado em 1835−, e a acção política global do Ministro Leite Pinto
(1955-1961), designadamente o seu propósito de alargar a escolaridade obrigatória para 6 anos através de uma via unificada de ensino, propósito que não teve força para concretizar, inserem-se neste contexto de afirmação dos industrialistas na condução da política portuguesa dos anos 50.

(d) Portugal, contrariamente a uma ideia errónea ainda muito difundida em meios políticos e académicos, participou no European Recovery Program, o conhecido Plano Marshall. Tal participação, estudada com rigor por Fernanda ROLLO (1994), permitiu a Portugal, para além de beneficiar da ajuda financeira norte-americana, ser membro fundador da OECE/OCDE.

(e) A participação, desde o primeiro momento, na criação e desenvolvimento das actividades da OECE/OCDE, permitiu aos sectores industrialistas uma fonte de legitimação (e de mandato) para as suas teses em diversas políticas sectoriais, com particular destaque para a educação. O Projecto Regional do Mediterrâneo (PRM), cujo início remonta a 1960 e que a OCDE desenvolveu entre 1962 e 1965, envolvendo, para além de Portugal, a Espanha, a Grécia, a Itália, a Turquia e a Jugoslávia, nasceu de uma proposta do Ministro português Leite Pinto, apresentada na sequência do exame que essa novel organização internacional realizou à política de educação de Portugal. Segundo reporta a própria OCDE, “le gouvernement portugais à
demandé l’aide de l’Organisation pour fixer les objectifs du développement de l’enseignement, afin de satisfaire les besoins de main-d’oeuvre correspondant aux finalités économiques à long terme du pays” (PAPADOPOULOS, 1994: 46).

(f) Por ausência de uma instituição de planeamento, a participação de Portugal no PRM é feita através de uma equipa de investigadores do Centro de Estudos de Estatística Económica do Instituto de Alta Cultura, coordenada pelo seu director, Alves Martins. Só em 1965, e após
sucessivas recomendações da OCDE, é criado no âmbito do Ministério da Educação Nacional o Gabinete de Estudos e Planeamento da Acção Educativa (GEPAE), que se vem a tornar, até 1974, o centro pensante das reformas educativas e uma verdadeira escola de futuros
responsáveis políticos da educação no país.

(g) A arte política de Salazar, o saber durar, na sua própria expressão, assentou na sua enorme capacidade de construir compromissos no seio dos diferentes sectores do regime, dando a imagem, em relação a várias políticas sectoriais, de avanços e recuos. Como assinala
Boaventura de Sousa SANTOS (1990), no bloco social dominante do Estado Novo, desde os seus começos e durante um longo período, a burguesia agrária (e, em aliança com ela, mas em posição subalterna, a burguesia comercial) foi a classe hegemónica. Considero que foi a partir
dos anos 50 que essa hegemonia começou a decair, primeiro no campo económico, depois no campo ideológico. A substituição em 1961 de Leite Pinto, engenheiro e professor do Instituto Superior Técnico, no Ministério da Educação por duas personalidades conotadas com os sectores mais tradicionalistas da universidade, - primeiro, durante um curto período (1961-1962), pelo professor de Letras da Universidade de Coimbra, Lopes de Almeida, e, depois, durante um largo período (1962- 1968), pelo professor de Direito da Universidade de Lisboa, Inocêncio Galvão Telles - insere-se seguramente nessa luta pela hegemonia no campo ideológico, que acompanha aliás o refrear do ímpeto industrialista dos anos 50 pelo próprio Salazar.

(h) A divulgação dos dois relatórios portugueses que integram o Projecto Regional do Mediterrâneo - Análise Quantitativa da Estrutura Escolar Portuguesa [1950-1959] (PRM, 1963) e Evolução da Estrutura Escolar Portuguesa (Metrópole). Previsão para 1975 (PRM, 1965) - acaba por se verificar durante o período em que Galvão Telles é ministro. Preocupado com o “surto de certo internacionalismo educacional, que tende a subordinar inteiramente, a escravizar, a educação à economia”, Galvão Telles desvaloriza o trabalho efectuado no âmbito do PRM - “não pode, sem mais, ser adoptado como plano ou critério de acção”, recorda no exacto momento em que divulga o segundo, e mais importante, relatório (PRM, 1965:XIV), e insiste na necessidade de subordinar o planeamento quantitativo, representado pelos trabalhos do PRM, ao planeamento qualitativo, ou seja aos princípios orientadores consignados em documento de forte matriz ideológica, o Estatuto de Educação Nacional, apontado como uma “carta magna do ensino, lei básica onde se contenham os grandes princípios orientadores, as ideias-força, onde se dê forma e expressão a um sistema renovado da acção educativa, fiel às grandes constantes do Cristianismo e da Lusitanidade, mas modernizado em função das exigências do presente e das tendências do porvir” (TELLES, 1966:145).

(i) O Estatuto de Educação Nacional representou uma derradeira (e falhada) tentativa de enquadrar a crescente procura social de educação nos valores nacionalistas e cristãos que enformaram ideologicamente todo o longo período do Estado Novo. As respostas a essa pressão da sociedade já não se podiam encontrar numa educação nacional “orientada pelos princípios da moral e doutrina cristãs tradicionais do País” (artº 1º, n.º 1 do projecto de Estatuto de Educação Nacional), nem muito menos nas cautelas tomadas para que a “ascensão cultural das massas” não viesse a “fazer correr o sério risco de estrangulamento ou abafamento do escol intelectual” (TELLES, 1966:178). Os tempos eram, definitivamente, outros.

(j) Inocêncio Galvão Telles é substituído no Ministério da Educação por José Hermano Saraiva, em Agosto de 1968. Constitui, seguramente, um problema de investigação interessante o procurar determinar as razões porque uma determinada personalidade é convidada para ocupar
um ministério, ainda por cima num regime não democrático, de total subordinação ao Presidente do Conselho, onde os critérios de legitimação eleitoral estão totalmente afastados. No caso de José Hermano Saraiva o problema torna-se duplamente interessante, pois é o único ministro do Estado Novo que não é professor universitário, quebrando uma tradição longamente arreigada na história do Ministério da Educação (e do Ministério da Instrução Pública, seu antecessor). Da
pesquisa que realizei, incompleta e assente apenas em testemunhos orais, duas razões sobressaem no convite efectuado a José Hermano Saraiva: (a) um apreço antigo de Salazar pelo relator das conclusões do último Congresso da União Nacional, e (b) a possível concordância de
Salazar com as observações críticas contidas no parecer da Câmara Corporativa ao III Plano de Fomento, elaborado precisamente por Hermano Saraiva, a pedido do então Presidente dessa Câmara, Supico Pinto.

(k) A consequência mais imediata da substituição de Galvão Telles por Hermano Saraiva foi o imediato abandono do projecto de Estatuto de Educação Nacional. Saraiva discordava não apenas de aspectos importantes do seu conteúdo, sobretudo da sua marcada vertente ideológica (e religiosa), mas sobretudo da estratégia que lhe estava subjacente. A estratégia de Hermano Saraiva assentava antes, na expressão de um alto funcionário do Ministério da Educação nesse
período, na identificação das “questões nevrálgicas”, dos “problemas concretos”, para, a partir dessa identificação, os atacar um a um; uma lei global, dizia-me esse alto funcionário a propósito das orientações que recebera de Hermano Saraiva, “não levava a nada, porque, no fundo, pela sua globalidade, criava-se um peça que acabava por não agarrar os verdadeiros problemas”.

(l) José Hermano Saraiva esteve pouco tempo no Ministério da Educação (Agosto de 1968 a Janeiro de 1970). Tendo-se mantido no Governo após a substituição de Salazar por Marcello Caetano, Hermano Saraiva acabou por ser afastado por este último na primeira oportunidade, ou seja, na remodelação governamental efectuada logo após as eleições para a Assembleia Nacional de 1969. O afastamento de Saraiva por Caetano deve-se, em primeiro lugar, à intenção do novo Presidente do Conselho de eleger a Educação como sector emblemático da renovação, papel que Saraiva não estava, manifestamente, em condições de representar. Mas deve-se igualmente a discordâncias latentes entre Caetano e Saraiva sobre as prioridades para a educação: enquanto que Saraiva afirmava atribuir uma prioridade absoluta ao ensino primário e, de certo modo, ao ensino secundário, relegando o ensino superior para um estatuto de prioridade partilhada, Caetano considerava que a universidade deveria constituir o centro principal das atenções da acção governativa, sendo admissível, como professor e antigo reitor universitário, que fosse sensível às críticas de sectores universitários que não viam com bons olhos que uma personalidade não oriunda dos meios universitários estivesse à frente do Ministério da Educação.

(m) Foi a questão universitária que esteve no centro do convite de Marcello Caetano a Veiga Simão, atribuindo este último as razões imediatas do convite que Caetano lhe dirigiu ao grande impacto que uma sua conferência sobre a programação do ensino superior tivera nos
meios políticos em Portugal, tendo, naturalmente, e tendo como razões mais distantes o seu trabalho na criação e rápida afirmação e desenvolvimento da então Universidade de Lourenço Marques.

(n) A acção de Veiga Simão, e em particular o que se tem designado de reforma Veiga Simão, tem sido objecto de múltiplas abordagens, centradas, dominantemente, nos aspectos de ruptura e de inovação que essa sua acção representou no quadro do Estado Novo. Penso, todavia, que existem duas direcções de análise ainda insuficientemente estudadas: uma, a estratégia de mudança adoptada; outra, os limites dessa acção reformadora.

(o) Na estratégia de mudança delineada por Veiga Simão, o processo de elaboração da Lei 5/73 constitui, seguramente, uma peça-chave. Defendo que a Lei 5/73 deve ser entendida, sobretudo, como um instrumento de mobilização e de legitimação da acção governativa. A preparação dos projectos de reforma assentou na mobilização, primeiro, do corpo técnico do Ministério, legitimando uma profunda reforma da sua lei orgânica e dos seus quadros dirigentes, e, depois, da opinião pública e, muito em particular dos professores. Paralelamente à preparação da Reforma, Veiga Simão fez aprovar um conjunto de medidas legislativas parcelares, recorrendo em geral ao famoso decreto “das experiências pedagógicas”, que consagraram aspectos
fundamentais da Reforma, visando, desse modo, criar uma situação de facto consumado e de pressão, sobre os elementos mais ortodoxos e conservadores do regime, no sentido da aprovação do projecto de Reforma do Sistema Escolar. Depois, aprovada a lei, esta funcionaria como legitimadora do novo quadro ideológico pretendido.

(p) Os limites da acção reformadora de Veiga Simão estão bem presentes na mobilização dos actores educativos, precisamente um dos elementos apresentados como de ruptura na sua acção política. Duas iniciativas atestam os limites dessa mobilização. Uma, fechando todas as
hipóteses de garantir o direito de associação dos professores; outra, acentuando os mecanismos de vigilância e de controlo policial sobre os estudantes universitários.

(q) Os Grupos de Estudo do Pessoal Docente, surgidos na sequência da abertura inicial do marcelismo e do apelo de Veiga Simão a uma participação pública dos professores nas questões educativas, viram, primeiro, a sua presença sucessivamente dificultada nas escolas, e,
depois, a censura e a perseguição aos seus membros institucionalizada através de um despacho do Secretário de Estado da Juventude e Desportos, Augusto Athaíde. Até mesmo o projecto de criar a Sociedade de Estudos Educacionais, uma sociedade de manifesto âmbito científico,
percursora do que veio a ser, depois da democracia, a Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, “perdeu-se” nos corredores do Ministério, inviabilizando desse modo a sua constituição. A participação máxima permitida limitou-se ao oficial Congresso do Ensino Liceal,
realizado em Aveiro em Abril de 19711.

(r) À progressiva transferência de orientação do movimento associativo estudantil das questões estritamente do foro académico para o campo político e, em particular, para a contestação à guerra colonial, respondeu o Governo de Caetano com a criação de novos instrumentos
de controlo policial e de repressão no meio académico. Especificamente, foi nos anos 70 que se afirmou e consolidou a actividade de uma “associação privada com estatutos aprovados pelo Ministério da Educação Nacional”, com a designação propositadamente anódina de Centro de Documentação Internacional (CDI). Esta “associação”, funcionando em instalações do Ministério da Educação e financiada através de verbas confidenciais do Gabinete do Ministro, teve a seu
cargo a coordenação da pesquisa e a análise das informações referentes ao meio estudantil, com uma dependência funcional múltipla - além do Ministério da Educação Nacional, o CDI dependia do Estado Maior General das Forças Armadas - e com uma estreita colaboração com a PIDE/DGS. Este “centro de documentação” foi responsável pela organização de um completo ficheiro dos estudantes universitários e das “actividades subversivas” no meio estudantil, bem como pelo recrutamento dos “vigilantes” - gorilas, na terminologia estudantil - para algumas faculdades de Lisboa, pelo apoio técnico e financeiro a algumas organizações estudantis de extrema-direita, especialistas no combate às associações de estudantes, e na organização de algumas grandes campanhas públicas de “acção psicológica” (de entre as mais conhecidas figuram as campanhas “O Exército, espelho da Nação” e “Droga, Loucura, Morte e a exposição “Paz e Progresso”).

(s) Mesmo com estes limites, a renovação personificada pela política de educação de Veiga Simão era incomportável para o regime. Os primeiros sinais públicos de distanciação do Presidente do Conselho para com a política do seu Ministro vieram do Congresso da Acção Nacional Popular,
realizado em Abril de 1973, onde Caetano faz um discurso marcadamente crítico face às reformas da educação. Depois, pelo menos por duas vezes, Simão vê importantes diplomas seus serem chumbados em Conselho de Ministros, a que responde com a apresentação do seu pedido de demissão, em ambos as situações não aceites por Caetano. Mas esta situação de progressivo afastamento e ruptura entre Caetano e Simão tinha um desfecho previsto: a exoneração de Veiga Simão de Ministro da Educação Nacional, prevista para ser tornada pública a 29 de Abril de 1974, estando já, desde o fim da tarde de 23 de Abril, escolhido o seu sucessor, Veríssimo Serrão, cuja tomada de posse se previra para a manhã de 2 de Maio (SERRÃO, 1985).

(t) A alternativa a essa ruptura teria sido, possivelmente, a aceitação por Marcello Caetano da proposta que Veiga Simão lhe apresentou, mas que aquele não aceitou: nomear António de Spínola Ministro da Defesa, apoiar-se nos militares contra a previsível reacção dos ultras do regime reunidos em torno de Américo Thomaz, preparar a transição e a abertura do regime e pôr em marcha a “política ultramarina” defendida por Spínola no seu livro Portugal e o Futuro. Sabe-se que Caetano não aceitou esta proposta, tendo preferido apresentar ao Presidente da
República a sua demissão, que este não aceitou. O resto da estória é conhecida: a revolução do 25 de Abril pôs fim à mais longa ditadura da Europa e tornou possível outras estórias.

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