segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Evolução de um conceito

"Quanto aos conceitos, temos assistido a uma evolução conceptual espantosa do ponto de vista político. Tenho falado a este propósito numa ressemantização, porque os projectos têm historicidade, sabemos quando e como empobreceu o conceito de educação permanente. Aparece nos anos 60/70, muito impulsionado pela Unesco, por um conjunto de autores na Europa e nos Estados Unidos. A educação permanente é um conceito típico de um determinado momento histórico, o período a seguir à II Guerra Mundial, com a construção do Estado Providência nos países centrais e as políticas tipicamente sociais-democratas. Esta ideia de que tem de haver uma política pública de educação de adultos, e a educação de adultos é objecto de uma política social, tem claramente a ver com o conceito de Estado Providência, com um projecto de Estado para a educação dos adultos. O Estado tem uma carta de deveres para com a população adulta. Não quer dizer que controle imediatamente todos os níveis e todas as áreas de educação de adultos, mas deve ter uma política, deve ter prioridades, deve apoiar, deve financiar, o que é absolutamente indispensável hoje em dia em Portugal e não ocorre. Nos anos 60/70, educação permanente e educação ao longo da vida eram uma e a mesma coisa, eram simplesmente variações de tradução, na língua inglesa era nesta altura o conceito de Life Long Education. Eram sinónimos, o projecto era o mesmo, a discussão era a mesma. O que ocorre há cerca de uma década é que se revitaliza o conceito de educação ao longo da vida e se redescobre ao nível da gestão, da economia, da política, um conceito de educação ao longo da vida já absolutamente desconectado do conceito de educação permanente. Em Portugal, em vez de continuarmos a falar em educação permanente fizemos uma alteração, deixámos o francês e fomos para o inglês. Não é apenas uma questão terminológica ou linguística. O conceito de educação ao longo da vida de que hoje falamos nas políticas públicas não é sinónimo de educação permanente, não se articula com as políticas de tipo social-democrata, um projecto público para a educação de adultos. Ela é já uma alternativa que, de certa forma, nem sequer é muito utilizada hoje. Verdadeiramente, foi uma porta de entrada para a emergência de outros dois conceitos muito mais importantes, “formação ao longo da vida” e, sobretudo, “aprendizagem ao longo da vida”. Em termos conceptuais e políticos fomos descendo. Cada vez se vai falando menos de educação e cada vez mais de formação, porque se articula com a formação contínua. Quem estuda estas áreas sabe que formação contínua é formação profissional contínua, o paradigma da formação profissional. Ora bem, porque é que hoje não insistimos na aprendizagem? Infelizmente não é por motivos de ordem pedagógica. O grande livro de referência, ao nível da Unesco, das políticas públicas, o paradigma da educação permanente é o “Aprender a Ser”, coordenado por Edgar Faure e publicado em 1972. Toda a vida estivemos preocupados com as aprendizagens dos adultos. As próprias metodologias da educação de adultos mais avançadas partiram disso. Paulo Freire propunha partir do universo do adulto dizendo, o adulto tem de aprender a ler, mas ele já faz a aprendizagem no mundo, a leitura do mundo é anterior à leitura da palavra. Porquê? Porque o adulto aprende experiencialmente, socialmente, aprende com os outros. Ora não é esta a justificação pedagógica para a tónica da aprendizagem ao nível das políticas públicas. Por uma razão muito simples, a aprendizagem responsabiliza o indivíduo, ao passo que a educação está ligada ao social, ao colectivo, ao bem público, ao conceito Estado Providência. A aprendizagem articula-se agora de uma outra forma, responsabiliza o indivíduo; cada indivíduo deve ser responsável pelo seu próprio percurso de aprendizagem, pela construção do seu próprio portfolio de competências, e portanto é o indivíduo o centro, a responsabilidade é mais individual e menos do Estado. Alguns autores dizem, é por isso que não precisamos de mais políticas públicas de educação de adultos. O governo dará algumas estratégias que serão lidas pela sociedade civil, pelo mercado, que se irá adaptando, reagindo. Ou seja, estamos perante um conceito, não de cidadão, mas de cliente e consumidor de aprendizagens, de formações, que tem de ler os sinais do tempo, da economia e do trabalho e, qual termóstato – perdoe-se a metáfora, reagir de imediato a qualquer turbulência do ambiente económico laboral e, em função disso apostar nas suas competências. Alguns sociólogos, como Richard Sennett ou Zygmunt Bauman, têm analisado isto dizendo, hoje compramos formação como compramos uma viatura ou um computador portátil, é um investimento no nosso bem-estar. Estamos a investir na aprendizagem ao longo da vida porque este conceito é de extracção individualista, permite menos responsabilidade por parte do Estado, responsabiliza mais o indivíduo. O indivíduo que pode pagar e que sabe o que precisa, vai ao mercado buscar as suas necessidades de formação, na lógica de que formação se encaminha sempre para um défice, há uma coisa que nos falta, há uma coisa em que somos incompetentes.A educação permanente não se dirigia a défices. A lógica da aprendizagem ao longo da vida, que é a lógica da empregabilidade ou da aquisição de competências para competir, é uma constelação de conceitos toda ela orientada para o ajustamento, para a adaptação ao mercado de trabalho. Aquela dimensão critica cidadã da educação perdeu-se completamente. Como é que Edgar Faure, em 1972, caracterizava a educação económica? Como uma educação que, obviamente, está atenta ao mundo do trabalho e à própria formação profissional, mas que tem como objectivo último capacitar os cidadãos para uma interrogação critica da economia, do trabalho e da capacidade da transformação das condições de produção e da própria economia. Isto acabou, hoje é considerado uma grande narrativa. Quando se fala hoje em qualificação, em aprendizagem, é sempre do ponto de vista da adaptação do indivíduo ao seu ambiente. O ambiente é turbulento, muda, é incerto, o indivíduo tem de se adaptar, se não se adapta não sobrevive, se não competir não progride. É muito darwinista, uma luta entre indivíduos baseada naquilo a que chamo uma pedagogia de um contra o outro. Porque se todos forem competentes, ninguém compete. A lógica das competências para competir só sobrevive se uns forem mais competentes que os outros. Como é que sabemos que fizemos bem o nosso portfolio de competências e o nosso percurso individual de aprendizagem? Em primeiro lugar, recomendo aos meus alunos, se o quiserem fazer escondam-no, não mostrem aos colegas, no segredo é que está a alma do negócio; segundo, como é que, empiricamente, eu sei que realizei isto bem? No momento em que deixo o outro para trás, no momento em que ganho uma posição ao outro. A competitividade é a palavra-chave da educação."
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