"Necessitamos de pesquisas sobre a possibilidade de usar a tecnologia para criar instituições que sirvam à interação pessoal, criativa e autônoma e que façam emergir valores não passíveis de controle substancial pelos tecnocratas."
"Dizer que a sociedade liberal pode apoiar-se na escola moderna é paradoxo. A salvaguarda da liberdade individual fica suspensa no relacionamento de um professor com seu aluno. Quando o professor reúne em sua pessoa as funções de juiz, ideólogo e médico perverte-se o estilo fundamental da sociedade pelo mesmo processo que deveria preparar para a vida."
"Sob o olhar autoritário do professor, diversas ordens de valores confundem-se numa só. A distinção entre moralidade, legalidade e valor pessoal torna-se confusa e é, eventualmente, eliminada. Toda transgressão torna-se uma ofensa múltipla. Espera-se que o transgressor sinta que violou uma norma, que agiu imoralmente e que traiu a si mesmo. Diz-se a um aluno que obteve ajuda irregular num exame que ele é um fora da lei, moralmente corrupto e sem dignidade pessoal."
"Inevitavelmente, este secreto currículo da escolarização ajunta preconceitos e culpa à discriminação que a sociedade pratica contra alguns de seus membros e concede aos privilegiados um novo título de condescenderem com a maioria. Também de maneira inevitável, este secreto currículo presta-se como rito de iniciação para uma sociedade de consumo, orientada para o progresso, tanto para ricos como para pobres." p.47
"Um estudante latino-americano que quiser entrar nessa fraternidade exclusiva gastará, em sua educação, 350 vezes mais dinheiro dos cofres públicos do que o gasto na educação do seu concidadão de renda média. Com raríssimas exceções, o licenciado universitário de um país pobre sente-se mais à vontade entre seus colegas norte-americanos e europeus do que entre seus compatriotas não-escolarizados. Todos os estudantes passam por um processo acadêmico tal que apenas se sentem felizes quando na companhia de companheiros que consomem os mesmos produtos da maquinaria educacional." p. 47
""A universidade moderna confere o privilégio de discordar apenas
aos que foram testados e classificados como potenciais homens de
dinheiro ou detentores de poder. Ninguém recebe um centavo dos
fundos fiscais para formar-se nas horas vagas ou para educar outros,
a não ser que possa comprová-lo por um certificado. As escolas
escolhem para os estágios seguintes aqueles que, nos primeiros
estágios do jogo, provaram ser bons investimentos para a ordem
estabelecida. Tendo o monopólio, tanto dos recursos de
aprendizagem, quanto da atribuição de funções sociais, a
universidade escolhe o descobridor e o dissidente potencial. Todo
título sempre deixa uma indelével etiqueta no currículo de seu
consumidor. Os formados por universidade se enquadram apenas
num mundo que coloca etiquetas comerciais em suas cabeças,
dando-lhes, assim, a faculdade de definir o grau de expectativa na
sua sociedade. Em todos os países, a quantidade consumida pelos
formados em universidades fixa o padrão dos demais. Se quiserem
parecer civilizados, devem aspirar ao estilo de vida dos formados emuniversidades."
"Na atual multiversidade, esta comunidade retirou-se para as
periferias, tendo um que outro encontro nos quartos, no gabinete do
professor ou na sala do capelão. A finalidade estrutural da moderna
universidade pouco tem a ver com a pesquisa tradicional. Desde
Gutenberg o intercâmbio da investigação disciplinada e crítica
processou-se, na maioria dos casos, da cátedra para a impressão. A
universidade moderna desperdiçou sua oportunidade de proporcionar
um excelente local para encontros que seriam, ao mesmo tempo,
autônomos e anárquicos, motivados mas não-planejados e
entusiastas. Escolheu, ao invés, administrar um processo que fabrica
a assim chamada pesquisa e instrução."
"Como diz Arnold Toynbee, a decadência de uma grande cultura
vem geralmente acompanhada do surgimento de uma nova Igreja
Universal que dá esperanças ao proletariado doméstico e ao mesmo
tempo satisfaz as necessidades de uma nova classe guerreira."
"Assim como Max Weber traçou os efeitos sociais causados pela crença de
que a salvação era reservada aos que haviam acumulado riquezas,
assim podemos observar agora que a graça é reservada àqueles que
acumulam anos de escola."
"A alienação, na concepção tradicional, era conseqüência direta do
fato de o trabalho ter-se convertido em trabalho assalariado, o que
tirava do homem a possibilidade de criar e ser recriado. Agora, os
jovens são pré-alienados pelas escolas que os isolam, enquanto
pretendem ser produtores e consumidores de seus próprios
conhecimentos, concebidos como mercadoria que a escola coloca no
mercado. A escola faz da alienação uma preparação para a vida,
separando educação da realidade e trabalho da criatividade. A escola
prepara para a institucionalização alienante da vida ensinando a
necessidade de ser ensinado. Aprendida esta lição, as pessoas
perdem o incentivo de crescer com independência; já não encontram
atrativos nos assuntos em discussão; fecham-se às surpresas da vida
quando estas não são predeterminadas por definição institucional. A
escola, direta ou indiretamente, emprega a maior parte da população.
A escola ou retém as pessoas por toda a vida, ou assegura de que se
ajustarão a alguma instituição.
A Nova Igreja do Mundo é a indústria do conhecimento, ao
mesmo tempo fornecedora de ópio e lugar de trabalho durante um
número sempre maior de anos na vida de uma pessoa. A
desescolarização está, pois, na raiz de qualquer movimento que vise
à libertação humana." p. 60
"A escola é o maior e mais anônimo empregador que existe. Ela é
o melhor exemplo de uma nova espécie de empresa, sucessora das
corporações, fábricas e sociedades anônimas. As corporações
multinacionais que dominaram a economia estão sendo
complementadas, agora, e podem ser substituídas, algum dia, por
agências de serviços supranacionais. Estas empresas apresentam
seus serviços de tal forma que todos os homens se sintam obrigados
a consumi-los. São intencionalmente padronizadas, redefinindo
periodicamente o valor de seus serviços, obedecendo a um ritmo
quase idêntico em todos os lugares." p. 61
"Mas, para a sociedade, a parada é bem maior quando uma significante
minoria perde sua fé na escolarização. Isto poria em perigo não só a
sobrevivência da ordem econômica, construída sobre a co-produção
de bens e demandas, mas também, da ordem política, construída
sobre o Estado-nação, ao qual a escola entrega seus alunos." p. 62
"Se não questionarmos a suposição de que o conhecimento é uma
mercadoria que, sob certas circunstâncias, pode ser infringida ao
consumidor, a sociedade será cada vez mais dominada por sinistras
pseudo-escolas e totalitários gerentes da informação. Os terapeutas
pedagógicos doparão sempre mais seus alunos com a finalidade de
ensiná-los melhor; os estudantes tomarão mais drogas para se
aliviarem das pressões dos professores e da corrida para os diplomas.
Número crescente de burocratas vai arvorar-se em professores. A
linguagem do homem de escola já foi escolhida pelo publicitário.
Numa sociedade escolarizada, a guerra e a repressão civil encontram
uma justificativa educacional. A guerra pedagógica, estilo Vietnã,
será justificada sempre mais como única forma de ensinar ao povo o
valor supremo do interminável progresso." p. 63
"Muitas pessoas já estão acordando para a inexorável destruição
que as tendências da atual produção representam para o meioambiente.
Mas pessoas isoladas têm poder muito limitado para
modificar essas tendências. A manipulação de homens e mulheres,
iniciada na escola, alcançou igualmente um ponto sem saída e a
maioria das pessoas ainda não se deu conta disso. Ainda se incentiva
a reforma escolar, da mesma forma como Henry Ford III propõe
automóveis menos poluidores." p.
"
Creio que o futuro promissor dependerá de nossa deliberada
escolha de uma vida de ação em vez de uma vida de consumo; de
nossa capacidade de engendrar um estilo de vida que nos capacitará
a sermos espontâneos, independentes, ainda que inter-relacionados,
em vez de mantermos um estilo de vida que apenas nos permite
fazer e desfazer, produzir e consumir — um estilo de vida que é
simplesmente uma pequena estação no caminho para o esgotamento
e a poluição do meio-ambiente. O futuro depende mais da nossa
escolha de instituições que incentivem uma vida de ação do que do
nosso desenvolvimento de novas ideologias e tecnologias. Precisamos
de um conjunto de critérios que nos permitirá reconhecer aquelas
instituições que favorecem o crescimento pessoal em vez de simples
acréscimos. Precisamos também ter a vontade de investir nossos
recursos tecnológicos de preferência nessas instituições promotoras
do crescimento pessoal.
A escolha está entre dois tipos institucionais radicalmente
opostos. Ambos se acham exemplificados em algumas das
instituições existentes. Um tipo caracteriza tão bem o período
contemporâneo que quase o define. A este tipo dominante proponho
que o chamemos instituição manipulativa. O outro tipo também
existe, mas apenas em forma precária; as instituições que nele se
enquadram são modestas e quase não aparecem. Mas são essas que
tomo por modelo para um futuro mais promissor. Denomino-as
«conviviais» e proponho que as coloquemos à esquerda de um
espectro institucional, tanto para mostrar que há instituições que se
enquadram entre os extremos, quanto para ilustrar como as
instituições históricas podem mudar de aspecto quando se deslocam
do fomento da atividade para a organização da produção." p. 65
"No extremo oposto do espectro encontram-se as instituições que
se distinguem pelo uso espontâneo — as instituições «conviviais».
Ligações telefônicas, cabos submarinos, vias postais, mercados
públicos e os intercâmbios não necessitam de especial política de
vendas para induzir os clientes a se servirem deles. Os sistemas de
drenagem, água potável, parques e calçadas são instituições que os
homens usam sem que precisem ser institucionalmente convencidos
de que é para seu bem usá-las." p. 66
"Aproximando-se do lado esquerdo, mas sem estarem ainda à
esquerda do espectro institucional, podemos encontrar empresas que
rivalizam com outras no mesmo campo, sem, no entanto, darem
muita importância à propaganda. É o caso das lavanderias, pequenas
padarias, cabeleireiros e — para falar de profissionais — alguns
advogados e professores de música. À esquerda do centro estão as
pessoas estabelecidas por conta própria que institucionalizaram seus
serviços mas não sua publicidade. Atraem os clientes por contacto
pessoal e pela qualidade de seus serviços." p.66
"
O sistema de rodovias, porém, não se torna disponível de igual
maneira para quem está aprendendo a dirigir. A rede telefônica e
postal existe para servir aos que desejam usá-la, ao passo que o
sistema de rodovias serve, principalmente, como acessório aos carros
particulares. Os primeiros são verdadeiros serviços públicos,
enquanto o último é um serviço público para donos de carros,
caminhões ou ônibus. Os serviços públicos existem por causa da
comunicação entre os homens; as rodovias, a exemplo de outras
instituições à direita, existem por causa de um produto. Os
fabricantes de automóveis — já o havíamos observado — produzem
simultaneamente os carros e a demanda de carros. Também
produzem a demanda de rodovias de diversas pistas, de pontes e
campos petrolíferos. O carro particular é o foco de uma série de
instituições do lado direito. O alto custo de cada elemento é ditado
pela elaboração do produto básico e para vender o produto básico é
preciso que a sociedade «morda o anzol» da embalagem completa." p. 71
"A «moderna» tecnologia transferida para países pobres cai em
três grandes categorias: bens, fábricas que os produzem e
instituições de serviços — principalmente escolas — que transformam
os homens em modernos produtores e consumidores. Grande parte
dos países gastam a maior proporção de seu orçamento nas escolas.
Os formados pela escola criam, então, uma demanda por outros
serviços notáveis, como poderio industrial, rodovias pavimentadas,
modernos hospitais e aeroportos. Estes, por sua vez, criam um
mercado para os bens feitos para os países ricos e, depois de certo
tempo, a tendência de importar maquinaria obsoleta para produzi-las.
A escola é o mais insidioso de todos os «falsos serviços». Os
sistemas de rodovias produzem apenas uma demanda de carros. As
escolas criam uma demanda pelo conjunto inteiro de instituições
modernas que enchem o lado direito do espectro. Alguém que
questionasse a necessidade de rodovias seria afastado, como sendo
romântico; alguém que questiona a necessidade de escolas é
imediatamente atacado e criticado como não tendo coração ou como
sendo imperialista." p. 71
"As rodovias resultam de uma perversão do desejo e necessidade
de locomover-se que se converte em demanda por um carro
particular. As próprias escolas pervertem a natural inclinação de
crescer e aprender, convertendo-a em demanda pela instrução. A
demanda pela maturidade manufaturada é uma abnegação bem
maior da iniciativa própria do que a demanda por bens
manufaturados. As escolas não estão apenas à direita das rodovias e
dos carros; elas pertencem ao extremo do espectro institucional,
ocupado pelos asilos totalitários. Mesmo os produtores de
quantidades de cadáveres matam apenas corpos. A escola, fazendo
com que os homens abdiquem da responsabilidade por seu
crescimento próprio, leva muitos a uma espécie de suicídio espiritual." p.
"
As rodovias são pagas, em parte, por aqueles que as usam, uma
vez que o pedágio e os impostos da gasolina são cobrados apenas
dos motoristas. A escola, no entanto, é um perfeito sistema de
taxação regressiva, onde o privilegiado graduado está a cavalo em
todo público contribuinte. A escola fixa uma taxa por cabeça, na
promoção. O subconsumo de quilometragem das rodovias está longe
de ser tão dispendioso quanto o subconsumo escolar. A pessoa que
não possui carro próprio em Los Angeles está quase imobilizada, mas
se puder arranjar-se para atingir um local de trabalho, pode
conseguir e manter um emprego. Quem abandona a escola antes de
completar o curso não tem alternativa. O habitante suburbano, com
seu Lincoln novo, e seu primo provinciano que dirige uma «lata
velha» fazem, essencialmente, o mesmo uso da rodovia, ainda que o
carro de um custe trinta vezes mais que o do outro. O valor da
escolarização de alguém está em função do número de anos e do
custo da escola que freqüentou. A lei não obriga ninguém a adquirir
carro, mas obriga todos a irem à escola." p. 73
Ivan Illich, 1970, Desescolarizar a sociedade, ...
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